A crise mundial da pesca

mar não está para peixe…

Os oceanos estão em apuros. Do extremo norte do mar da Groenlândia aos vagalhões gelados do círculo antártico, estamos limpando os peixes de nossos mares. De 1900 até hoje, pode ter havido um declínio de quase 90% em muitas espécies, e o problema só se agrava. Super-redes de arrasto varrem os recifes. Países violam as leis. Cotas de pesca não são respeitadas.

A crise anuncia-se na mesa vazia de uma família no Senegal, na queda do número de alunos em uma escola elementar de um povoado costeiro, no cardápio dos restaurantes e na esteira de pescado inaproveitado e lançado à deriva. Nas três histórias a seguir, comparamos os prejuízos líquidos com os magros lucros. Primeiro, a magnitude do problema, refletida no massacre do majestoso atum-azul. Depois, para compensar, o caso de uma reserva marinha na Nova Zelândia obstinadamente mantida por um biólogo que prega a necessidade de nova ética para o oceano: que ele seja visto não como um recurso natural a ser explorado, mas como uma comunidade pertencente a todos nós. Finalmente, a situação da pesca na extensa costa brasileira, em comunidades onde o declínio de espécies marinhas, como a lagosta, priva o povo de seu sustento e arrasa um modo de vida transmitido de geração a geração.

A crise mundial da pesca

Não há nos mares deste planeta nenhum peixe mais magnífico que o atum-azul. Ele pode atingir 3,65 metros de comprimento, pesar até 680 quilos e viver por 30 anos. Apesar de todo esse tamanho, ele é um primor da hidrodinâmica, capaz de nadar a 40 quilômetros por hora e mergulhar a quase 1 quilômetro de profundidade.

Ele destoa da maioria dos outros peixes no sistema circulatório de sangue quente, que lhe permite viajar do Ártico aos trópicos. No passado, milhões de atuns-azuis migravam por toda a bacia do Atlântico e mar Mediterrâneo, e sua carne era importantíssima para os povos do mundo antigo, que pintavam sua imagem em cavernas e a cunhavam em moedas.

O atum-azul, também chamado de albacora-azul, tem outra qualidade extraordinária, e essa pode selar seu destino: a carne amanteigada de sua barriga, com generosas camadas de gordura, é considerada o mais fino sushi do mundo. Na década passada, uma frota pesqueira high-tech, guiada por aviões localizadores, perseguiu atuns-azuis de uma ponta a outra do Mediterrâneo e capturou, muitas vezes ilegalmente, dezenas de milhares por ano. Os atuns-azuis são engordados em alto-mar em gaiolas, depois abatidos a tiros e cortados para os mercados de sushi e filé de atum do Japão, das Américas e da Europa. Tantos atuns-azuis são extraídos do Mediterrâneo que sua população corre o risco de extinção. Enquanto isso, as autoridades européias e norte-africanas pouco fazem para impedir a matança.

\\\”Meu grande medo é que possa ser tarde demais\\\”, diz o espanhol Sergi Tudela, biólogo marinho do WWF-Fundo Mundial para a Natureza à frente na luta para conter a pesca do atum-azul. \\\”Tenho uma imagem muito vívida na mente: a migração de incontáveis bisões-americanos pelo oeste dos Estados Unidos no começo do século 19. Era assim também com os atuns-azuis no Mediterrâneo: uma colossal migração de animais. E agora estamos vendo com o atum-azul o mesmo fenômeno ocorrido com o bisão-americano.\\\”

O extermínio do atum-azul reflete todos os problemas hoje encontrados na pesca: a capacidade de abate multiplicada pela tecnologia, a suspeita rede de empresas internacionais que têm lucros estratosféricos, a negligência no manejo da pesca e na aplicação das leis e a indiferença dos consumidores à sorte do peixe que compram.

Os oceanos do mundo são uma sombra do que já foram. Com poucas e notáveis exceções, como a pesca bem administrada do Alasca, da Islândia e da Nova Zelândia, o número de peixes nos mares é uma fração do que era há um século. Os biólogos marinhos divergem quanto ao grau desse declínio.

Alguns afirmam que os estoques de muitos peixes marinhos grandes diminuíram de 80% a 90%; outros apontam uma queda menor. Mas todos concordam que, em quase toda parte, há barcos demais atrás de peixes de menos.

Espécies muito procuradas, como o bacalhau cod (Gadus morhua), minguaram desde o mar do Norte até Georges Bank, na costa da Nova Inglaterra. No Mediterrâneo, 12 espécies de tubarão estão comercialmente extintas, e os espadartes, que deveriam crescer até a largura de um poste telefônico, hoje são apanhados ainda jovens e comidos quando estão menores que um bastão de beisebol. Esgotada a capacidade de muitas áreas de pesca no hemisfério norte, as frotas comerciais correram para o sul, e agora exploram em excesso essas águas piscosas outrora abundantes. Na costa da África Ocidental, onde a supervisão é precária, frotas nacionais e estrangeiras estão aniquilando os estoques de peixes das produtivas águas da plataforma continental e privando de sua principal fonte de proteína as famílias dos pescadores de subsistência do Senegal, Gana, Guiné, Angola e outros países. Na Ásia, tantos barcos pescam nas águas do golfo da Tailândia e do mar de Java que os estoques quase se esgotaram. \\\”Os oceanos padecem de muitos males, mas a pesca é o pior deles\\\”, diz Joshua S. Reichert, da ONG Pew Charitable Trusts.

\\\”Cruel\\\” pode parecer um adjetivo muito duro para a imemorial profissão de pescador, e sem dúvida não se aplica a todos os que a exercem. Mas como classificar os pescadores de tubarão que no mundo todo matam dezenas de milhões desses animais por ano, muitos dos quais abandonados vivos na água depois de terem as barbatanas arrancadas para virar ingrediente de sopa? Que dizer do número incalculável de peixes e outros seres marinhos capturados em redes e, não sendo considerados aproveitáveis, são jogados de volta ao mar, mas só depois de morrer sufocados? Ou da pesca com espinhel – uma linha longa com quilômetros de anzóis e iscas que atraem e afogam criaturas, como a tartaruga-cabeçuda e o albatroz-gigante?

Sancionamos tamanha perda porque os peixes vivem em um mundo que não enxergamos? Seria diferente se, como imaginou um conservacionista, os peixes gritassem de aflição quando os tiramos da água em redes? Se o atum-azul vivesse em terra, seu tamanho, sua velocidade e suas épicas migrações o tornariam legendário, e turistas viriam fotografá-lo nos parques nacionais. Mas, como ele vive no mar, sua majestade – comparável à do leão – deixa de ser apreciada.

Uma das ironias – e tragédias – da caça do atum-azul no Mediterrâneo é que o próprio ato da procriação agora deixa o peixe à mercê das frotas pesqueiras. Durante a primavera e o verão as águas se aquecem e os cardumes de atum-azul sobem à superfície para a desova. As grandes fêmeas cortam as águas nadando de lado e expondo seu volumoso dorso prateado. Cada uma expele dezenas de milhares de ovos, e os machos emitem nuvens de leita (esperma de peixe). Em um dia calmo, essa turbulência reprodutiva com lampejos de nadadeiras, mar revolto, esteiras de ovas e esperma pode ser vista do alto a quilômetros, e os aviões a localizam.

Numa cálida manhã de julho, nas águas cor de safira a oeste da ilha espanhola de Ibiza, seis pesqueiros com rede de cerco de três firmas concorrentes buscavam atuns-azuis. As redes, cônicas em formato de bolsa, eram arrastadas próximo ao fundo, guiadas por três aviões localizadores que rondavam no céu como abutres.

No centro da ação estava o basco Txema Galaz Ugalde, biólogo marinho, mergulhador e pescador que ajuda a gerir a Ecolofish, uma das 69 fazendas de criação ou engorda de atum que brotaram por todo o Mediterrâneo. A Ecolofish possui cinco pesqueiros de rede de cerco. Seu principal rival naquela manhã era o barão do atum do Mediterrâneo, Francisco Fuentes, da Ricardo Fuentes & Filhos, cujas operações em escala industrial vêm depredando estoques de atum-azul.

Eu estava com Galaz no La Viveta Segunda, um barco de apoio com 22 metros de comprimento. Ela pertence à frota de barcos de transporte de mergulhadores e rebocadores de gaiolas que seguem os pesqueiros equipados com redes de cerco. Por volta das 11 da manhã, os aviões localizaram um cardume, e os barcos partiram em disparada a 19 nós. O prêmio era alto. Até um pequeno cardume de 200 atuns-azuis, depois de engordado, pode alcançar mais de meio milhão de dólares no mercado japonês. Pelo binóculo, Galaz viu um pesqueiro da Ecolofish chegar primeiro ao cardume e começar a cercá-lo com uma rede de 1,6 quilômetro de comprimento. \\\”Ele está pescando!\\\”, grita Galaz. \\\”Está lançando a rede!\\\”

A vitória não foi total. Antes que o barco da Ecolofish conseguisse fechar o cerco, um pesqueiro da Fuentes alcançou a rede que se armava. Segundo uma das poucas regras existentes no vale-tudo da pesca do atum no Mediterrâneo, esse toque simbólico dá ao concorrente o direito de dividir o pescado meio a meio.

Nas várias horas seguintes, Galaz e seus mergulhadores transferiram os peixes – 163 atuns-azuis com peso médio de 136 quilos – da rede para a gaiola marinha, um cercado de 48 metros de diâmetro com uma reforçada armação de plástico sustentando uma pesada rede de malha fina. Enquanto essa prisão, já transbordando com mil atuns capturados nos dias anteriores, era alinhada com a rede de cerco, Galaz convidou-me para um rápido mergulho.

Nadar com aqueles peixes era fascinante, mas nada tranqüilo. Os atuns-azuis, como diz Galaz, são \\\”como mísseis, projetados para a velocidade e a força\\\”. Têm o dorso no tom cinzento dos navios de guerra, encimado por uma linha serrilhada de pequenas barbatanas dorsais amarelas. Os flancos lembram a cor de cromo e aço batido; alguns têm uma listra azul fluorescente. Os peixes maiores, que pesavam mais de 226 quilos, tinham pelo menos 2,5 metros de comprimento.

Um dos atuns chamou-me a atenção. Tinha uns 140 quilos a mais e era meio metro mais comprido que a maioria dos outros. Ele não estava nadando sem parar em sentido horário junto com o cardume. Arrojava-se em várias direções, taciturno e agressivo, e quase me roçou quando me mediu com seus olhos negros, redondos como um disco. E mais: ele tinha um anzol de aço inoxidável cravado na boca e arrastava uma longa linha. Naquelas últimas semanas, mordera uma das milhares de iscas lançadas por um barco com espinhel. Não sei como, conseguira libertar-se.

Depois de abrir o grande portão da rede dentro do cercado, Galaz e sua equipe começaram a tanger os peixes. Desenrolados de seu giro, os atuns-azuis entraram como torpedos na gaiola. O do anzol na boca foi um dos últimos, mas por fim veio do fundo e entrou na gaiola, arrastando um mergulhador que pegara carona na linha.

O butim da Ecolofish era parte da captura legal anual de 32 mil toneladas métricas no Mediterrâneo e leste do Atlântico. Mas a verdadeira quantidade está mais próxima da faixa de 50 mil a 60 mil toneladas. O grupo encarregado do manejo dos estoques de atum-azul, a Comissão Internacional para a Conservação do Atum Atlântico (ICCAT, na sigla em inglês), reconheceu que a frota pesqueira tem violado escandalosamente as cotas. Na estimativa dos cientistas, se a pesca prosseguir nos níveis atuais, os estoques serão aniquilados. Mas, apesar de alertas de seus próprios biólogos, a ICCAT, que tem 43 países-membro, recusou-se a reduzir significativamente as cotas em novembro passado, desconsiderando as objeções das delegações dos Estados Unidos, Canadá e vários outros países. Como o atum-azul às vezes migra para o outro lado do Atlântico, os cientistas e os pescadores americanos que respeitam pequenas cotas em seu próprio litoral clamam há tempos por uma grande redução na captura do atum-azul no Mediterrâneo.

\\\”Chegou-se a um ponto no Mediterrâneo em que, se os estoques de atum-azul não foram dizimados, estão perto disso\\\”, diz William T. Hogarth, nomeado diretor da ICCAT e também diretor do Serviço Nacional de Pesca Marítima dos Estados Unidos. \\\”Fiquei muito decepcionado. Quando se trata do atum-azul, a ciência parece ser jogada pela janela. O resultado foi que eu, como diretor, me senti presidindo a extinção de um dos peixes mais magníficos de todos os oceanos.\\\”

A história do atum-azul começou em insondável abundância. Ele irrompia no estreito de Gibraltar toda primavera e se espalhava pelo Mediterrâneo para a desova. Ao longo de milênios, os pescadores foram criando um método para estender redes a partir da costa a fim de interceptar os peixes, afunilar seu trajeto e dirigi-los para a captura. Em meados dos anos 1800, 100 armadilhas para atum, conhecidas como tonnara na Itália e almandraba na Espanha, apanhavam por ano mais de 15 mil toneladas de atum-azul. Era uma pesca sustentável, que alimentava milhares de trabalhadores e suas famílias.

Hoje sobraram cerca de uma dúzia desses pesqueiros com armadilhas. O resto fechou, por falta de peixes e também por causa do desenvolvimento litorâneo e da poluição. Um dos poucos remanescentes é a famosa tonnara, fundada por árabes no século 9 na ilha de Favignana, vizinha da Sicília. Em 1864, pescadores de Favignana bateram um recorde: pescaram 14 020 atuns-azuis, com peso médio de 192 quilos. No ano passado foram tão poucos os peixes apanhados – cerca de 100, pesando em média 29 quilos – que Favignana fez apenas uma mattanza. Nesse processo, os atuns são tangidos para um cercado com rede e trazidos à superfície, onde os pescadores os abatem com arpões. Um sinal da decadência da tonnara de Favignana é ser administrada por uma executiva de marketing de Roma, Chiara Zarlocco. Sua meta para o futuro é vestir os pescadores em trajes típicos para reencenarem a mattanza.

A catástrofe para o atum-azul do Atlântico começou nos anos 1990. Na época, a pesca reduzira os estoques de atum-do-sul para cerca de 6% a 12% dos números originais nos oceanos Pacífico Sul e Índico. Essa espécie, junto com o Thunnus orientalis e o atum-azul do Atlântico, compõe as três espécies de atum-azul do mundo, todas apreciadíssimas para o sushi. Os japoneses, procurando novas fontes, foram para o Mediterrâneo, que tinha grandes reservas de atum-azul.

Em 1996, croatas que haviam desenvolvido técnicas para engordar atum na Austrália criaram no Adriático a primeira fazenda de atum do Mediterrâneo. O processo era simples. Os peixes recém-capturados eram transferidos para gaiolas perto da costa. Ali, por meses ou anos, eram alimentados com peixes gordurosos, como anchova e sardinha, para que sua carne adquirisse o alto teor de gordura tão valorizado no Japão.

A perspectiva de uma produção constante e altamente lucrativa de gordos atuns-azuis do Mediterrâneo desencadeou uma série de eventos desastrosos. A indústria pesqueira do Mediterrâneo triplicou suas atividades. A flotilha de pesca do atum-azul agora contém 1,7 mil barcos, entre eles 314 com redes de arrasto. Para piorar, a criação das fazendas de atum dificultou a imposição de cotas pela União Européia e por governos nacionais. Os atuns-azuis são capturados, transferidos para gaiolas no mar, engordados e abatidos longe da costa e rapidamente congelados em navios japoneses. \\\”É uma espécie de caixa-preta\\\”, disse-me o ex-diretor da ICCAT Masanori Miyahara, da Agência de Pesca do Japão.

A disseminação das fazendas significa que o atum-azul está sendo dizimado em todas as fases de sua vida. Na Croácia, por exemplo, a indústria baseia-se quase totalmente na engorda de jovens por dois ou três anos, e com isso os peixes são abatidos antes de desovar. Em outros lugares, como as ilhas Baleares, as fêmeas grandes, capazes de produzir 40 milhões de ovos, estão sendo exterminadas. Em apenas dez anos, as populações de atum-azul rarearam drasticamente.

\\\”Está acontecendo mais ou menos o que ocorreu com o bacalhau cod\\\”, diz Jean-Marc Fromentin, biólogo especialista em atum-azul do Instituto Francês de Pesquisa para a Exploração do Mar (Ifremer). \\\”Não vemos a queda imediatamente porque existe enorme acúmulo de biomassa. Mas é como uma conta bancária de onde tiramos muito e depositamos pouco.\\\”

No centro da indútria pesqueira está Francisco Fuentes e sua empresa, a Ricardo Fuentes & Filhos, sediada em Cartagena. Especialistas afirmam que ele controla 60% do gigantesco ramo do atum-azul no Mediterrâneo, faturando mais de 220 milhões de dólares anuais, segundo fontes da indústria. (Um porta-voz de Fuentes disse que a receita é metade disso.) Em parceria com as gigantes japonesas Mitsui, Mitsubishi e Maruha, o Grupo Fuentes, com subsídios da União Européia e Espanha, comprou as gaiolas marinhas, os rebocadores e os barcos de apoio necessários a operações de engorda em grande escala. A Fuentes & Filhos também entrou em parcerias com empresas francesas e espanholas donas de 20 pesqueiros com rede de cerco – embarcações de 5 milhões de dólares equipadas com potentes sistemas de sonar e redes capazes de capturar 3 mil atuns-azuis adultos.

Com o Grupo Fuentes e seus parceiros à frente, a frota de pesca do atum-azul perseguiu metodicamente o peixe nas áreas de desova próximo à Europa. Depois voltou-se para regiões intocadas. A mais rica dessas reservas extra-oficiais era o golfo de Sidra, na Líbia. \\\”Era o aquário de atuns do Mediterrâneo\\\”, recorda Roberto Mielgo Bragazzi, consultor de fazendas de atum que há seis anos visitou o local pela primeira vez. \\\”Eu nunca vira nada igual. O peso médio do atum-azul chegava a 272 quilos. Era uma das últimas Shangri-lás do atum.\\\”

O garboso espanhol Mielgo Bregazzi, ex-mergulhador profissional e atual diretor de uma empresa de consultoria na pesca do atum, tem-se empenhado em denunciar a pesca ilícita, não declarada e não regulada da espécie. Com base em uma vasta rede de fontes privilegiadas e de informações publicadas, ele escreveu longos e minuciosos relatórios sobre a pesca ilegal. Analisando dados que nada diriam a um o leigo, como a capacidade e os horários dos navios-frigoríficos japoneses, ele concluiu que a frota de pesca do atum no Mediterrâneo vem capturando quase o dobro de sua cota legal anual.

Mielgo Bregazzi diz que a Ricardo Fuentes & Filhos e um parceiro francês trabalham com uma empresa líbia, a Ras el Hillal, na pesca de atum gigante em águas da Líbia. Segundo Mielgo Bregazzi, Seif al Islam Kadafi, filho do líder líbio Muammar Kadafi, tem interesse financeiro na Ras el Hillal e faturou milhões de dólares com a pesca do atum-azul. Mielgo Bregazzi calculou que, nos últimos quatro anos, as frotas pesqueiras apanharam mais de 10 mil toneladas de atum-azul por ano em águas líbias. Parte desse butim é legal, está dentro das cotas para barcos líbios, espanhóis e franceses, mas uma grande parcela parece ser capturada ilegalmente.

Davi Martinez Cañabate, diretor-adjunto do Grupo Fuentes, garante que a empresa não tem \\\”nenhuma\\\” ligação com a família Kadafi e que todos os atuns capturados, comprados ou criados foram apanhados dentro da lei e devidamente documentados junto à ICCAT e às autoridades espanholas. Admite que tem havido sobrepesca do atum-azul, principalmente por empresas que não possuem fazendas e vendem os peixes logo depois de capturá-los. Frotas de outros países também pescam o atum-azul e os levam ilegalmente a fazendas, diz Martinez. Ele afirma que boa parte das informações de Mielgo Bregazzi é \\\”incorreta ou, pior, mal intencionada\\\”, e que o Grupo Fuentes tem apoiado as medidas conservacionistas. \\\”Somos nós os mais interessados no futuro do atum\\\”, diz Martinez. \\\”Ganhamos a vida com esse recurso.\\\”

Na verdade, o mercado foi inundado por tantos atuns-azuis da Líbia e de outras partes do Mediterrâneo que as empresas japonesas têm 20 mil toneladas estocadas em freezers gigantes. Com a superabundância, nos últimos anos os preços para os pescadores caíram pela metade: entre 6,60 a 8,80 dólares por quilo. Mesmo assim, o valor dos atuns-azuis capturados anualmente na Líbia e engordados por vários meses beira os 400 milhões de dólares no mercado japonês.

\\\”Estão matando tudo\\\”, sentencia Mielgo Bregazzi. \\\”Os peixes não têm chance.\\\”
Pude avaliar o desrespeito das frotas pesqueiras pelas cotas para o atum-azul durante uma visita à ilha italiana de Lampedusa, ao sul da Sicília. Para dar mais tempo de vida ao atum durante o auge da temporada de desova, as regras da União Européia e da ICCAT proíbem os aviões localizadores de voar em junho. Freqüentemente essa regra é violada.

Voei numa manhã de junho com Eduardo Domaniewicz, piloto argentino-americano que desde 2003 faz a localização de atuns para pesqueiros com rede de cerco franceses e italianos. No banco ao lado da aeronave estava Alfonso Consiglio, cuja função é detectar os peixes. Eles vasculhavam as águas entre Lampedusa e Tunísia. Não eram os únicos: três outros aviões procuravam atum ilegalmente, transmitindo os avistamentos a cerca de 20 pesqueiros com rede de cerco que navegavam lá embaixo. (Após duas horas, ventos altos e mar revolto dificultavam a visão e captura dos peixes, e por isso os aviões voltaram para Lampedusa e Malta.)

Domaniewicz estava num dilema. Adorava pilotar, e era bem pago. Acreditava que seus vôos estavam dentro da lei, pois a Itália não concordara com a proibição. Mas, depois de três anos localizando o atum-azul para os pesqueiros, estava farto da pesca sem controle. Pouco antes de eu chegar a Lampedusa, ele vira dois pesqueiros apanharem 378 mil quilos de atum-azul, faturando juntos mais de 2 milhões de dólares.

\\\”Os peixes não têm como escapar dessa tecnologia avançada\\\”, comenta ele. Sobre os franceses que pescam com redes de cerco na Líbia, ele diz: \\\”Sou um ambientalista, não tolerava o modo como pescavam, sem ligar para as cotas. Eu via aquele pessoal levando tudo. Pegam o quanto querem. Só vêem dinheiro no mar. Não pensam no que vai acontecer daqui a dez anos.\\\”

Alfonso Consiglio, cuja família possui uma frota de pesqueiros de rede de cerco, também se sente incomodado. \\\”O preço está baixo porque pescamos cada vez mais atum\\\”, explica ele. \\\”Minha única arma é pegar mais peixes. É um círculo vicioso. Se eu pescar só a minha cota de mil atuns, não poderei ganhar a vida, pois o preço está baixo. Quero respeitar a cota, mas não posso, preciso viver. Se os barcos de todos os países respeitassem as regras, o atum não acabaria. Se apenas alguns países as respeitam e os outros não, o pescador que as segue está frito.\\\”

Como interromper esse ciclo incessante de sobrepesca? Como impedir que as frotas mundiais cometam suicídio ecológico e econômico esvaziando os oceanos de seu atum-azul, tubarão, bacalhau, arenque, perca-do-mar, caranha-vermelha, garoupa, esturjão, linguado, bodião, arraia e outras espécies?

Respondem todos os especialistas: primeiro, os oceanos do planeta devem ser manejados como ecossistemas, e não simplesmente como despensa de onde a indústria pesqueira pode extrair proteínas à vontade; segundo, os conselhos gestores que supervisionam a pesca, como a ICCAT, há tempos dominados pelos interesses comerciais pesqueiros, têm de dividir o poder com os cientistas e os conservacionistas. E mais: os governos precisam reduzir os 4 milhões de barcos pesqueiros do mundo – quase o dobro do necessário para a pesca marítima sustentável – e diminuir muito os estimados 25 bilhões de dólares anuais de subsídios concedidos à indústria pesqueira.

Além disso, as associações de pesqueiros terão de estipular cotas rígidas e zelar pelo seu cumprimento. Para o atum-azul gigante do Mediterrâneo, isso pode significar a interrupção da pesca durante a temporada da desova e um aumento substancial do peso mínimo permitido para a captura. Recentemente a ICCAT deixou de estabelecer uma redução significativa nas cotas e de interromper a pesca no auge da desova, Por outro lado, proibiu os aviões localizadores e aumentou para 30 quilos o peso mínimo permitido para captura em boa parte das áreas. Mas, sem inspeção e aplicação das regras, as novas leis da comissão, assim como as velhas, não terão valor.

Outra medida crucial, no Mediterrâneo e no mundo todo, seria a criação de vastas áreas marinhas protegidas. Também importantes são as campanhas de grupos como o Marine Stewardship Council (Conselho de Manejo Marinho), que procura promover entre os consumidores e gigantes do varejo o comércio de peixes capturados de maneira sustentável.

Na frente da indústria pesqueira, as notícias não são de todo desalentadoras. De fato, quando existe o manejo sustentável, as populações de peixes – e a indústria pesqueira – são sadias. Um ótimo exemplo é o Alasca, onde os estoques de salmão do Pacífico e pescada-polaca são abundantes. A pesca do bacalhau cod na Islândia é próspera, porque também segue uma regra fundamental de conservação: limitar o número de barcos que podem capturar os peixes.

Mas todos concordam que a reforma fundamental não é na regulamentação, mas na mentalidade das pessoas. O mundo tem de começar a enxergar as criaturas que habitam o mar como vê os animais terrestres. Só quando os peixes forem vistos como bichos da natureza, merecedores de proteção, só quando o atum-azul do Mediterrâneo for considerado tão magnífico quanto o urso grizzly do Alasca ou a onça-pintada brasileira, só então cessará a dilapidação dos oceanos.

Fonte: Por: Fen Montaigne – Matéria publicada na revista National Geographic Edição 85 – 01/04/2007

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